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Viva! E proteja a Deusa-Mente do Deus-Tempo


O tempo escorre pela pele à forma de um rio caudaloso, perene, que vai esculpindo sulcos como num solo arenoso. Olha-se no espelho um dia e se percebe que esse movimento contínuo modifica a imagem. O viço e o brilho que outrora dividiam o espaço com uma ou outra espinha vão dando lugar a uma nova geografia. Formam-se canaletas que nos acostumamos a chamar de rugas. Em volta dos olhos, no meio da testa, nos cantos dos lábios.


Simultaneamente, os fios que preenchiam o topo da cabeça se tornam mais raros e ralos. Os que teimam em enfrentar a dança dos ponteiros do relógio, de tanto esforço, desbotam. Então se tornam brancos, assim como aqueles que ocupam as têmporas, o bigode e o queixo. Os alvos fios fincados na fisionomia surgem sem chamar a atenção, aqui e acolá, mas de repente se rebelam e partem para a conquista definitiva do latifúndio.


Em bem orquestrada ação, gomos de adiposidade começam a se instalar junto ao abdômen, reivindicando um espaço que há tempos cobiçavam. Ganham volume, crescem e aparecem. Os botões da camisa precisam fazer um esforço extra para contê-los. Sim, os mesmos botões que há pouco balançavam folgados ao sabor dos movimentos, agora se agarram às suas casas para que não sejam arremessados espaço afora.


Enfim, é o Deus-Tempo que jamais cessa. Uma usina transformadora de bebês em crianças, e depois em jovens, e então em adultos, que passam para senhores de meia-idade e finalmente se curvam à velhice. Porém, sob as rugas e os fios brancos, a salvo da gordura abdominal, está a Deusa-Mente, que tem o poder de se manter vívida apesar do que se vê no espelho. Só ela faz frente ao Deus-Tempo, encarando-o com coragem.


É preciso mantê-la alimentada, ativa, para que exerça seus poderes. Não se trata de se portar como jovem, mas de se sentir vivo. De unir a experiência que traz o Deus-Tempo com a vontade de aprender sempre mais, que nos oferece a Deusa-Mente. É preciso evoluir, a cada dia. E nem só dos bons momentos vivemos, nada de felicidade tóxica, plastificada em redes sociais. Necessitamos chorar e às vezes sofrer. Mas graças ao Deus-Tempo, tudo passa.


Blinde a mente com a busca de novos horizontes. De novas práticas. De novos hábitos. De novas amizades. As águas caudalosas do Deus-Tempo continuarão a erodir nossa pesada embalagem de carne e osso. Porém, a Deusa-Mente, continuamente se fartando de gosto pela vida, estará lá dentro, bem protegida, transbordando de viço e brilho.

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