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Crônica: Sem resiliência, o sabiá não faz seu ninho

FRANCAMENTE – 28/10/20



No topo do pilar no qual o madeiramento do telhado se apoia, sobra um cantinho. Espaço mínimo. Mas o sabiá (ou a sabiá, não sei qual dos dois faz os ninhos) resolveu ali instalar o berço para sua nova geração. Não é a primeira vez. E sempre é a mesma luta. Ele traz os galhinhos que devem proteger os ovinhos, mas derruba mais no chão do que empilha. No começo, a sujeira me incomodava, mas aos poucos fui entendendo que, perto do trabalho que o passarinho tem que realizar, uma varridinha não custa nada.


Pois a cada primavera um sabiá (não sei se é o mesmo ou se ele espalha entre os amigos que o lugar é bom) faz um novo ninho no mesmo lugar. Uma rolinha achou que era boa ideia e agora fez o seu no pilar ao lado. Ela, porém, mostrou-se uma arquiteta mais habilidosa. Fez um ninho de respeito, que subiu pelas madeiras e parece bem seguro. Mas a perícia da vizinha não foi suficiente para inspirar o sabiá a caprichar mais. Ele segue no seu ritmo, derrubando dois galhos e encaixando um. Talvez a proporção seja ainda pior.


Fico admirado com sua insistência. Na verdade, insistência não é a palavra certa. Tem uma que está na moda, à qual me afeiçoei: resiliência. Fui ouvindo cada vez mais essa tal de resiliência ser dita aqui e ali, nas mais diversas situações. Seu sentido parece claro, mas quis pesquisar. Afinal, a língua portuguesa nos prega peças. “A resiliência é a capacidade do indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas”, achei na Wikipédia.


Logo abaixo, encontrei um trecho ainda mais interessante sobre o que faz a resiliência: “O indivíduo condiciona a mente a tolerar os pensamentos assustadores e consegue esquivar-se do sofrimento ao entender que a dor fará, inevitavelmente, parte da trajetória da vida”. Essa definição veio ao encontro do que venho aprendendo, a conta gotas, há muito tempo. O meu mix de saúde mental inclui florais, microfisioterapia, religião, livros, podcasts, meditação, ioga, páginas do Instagram...


Venho bebendo de todas essas fontes há anos. E todas elas colocam no meu copo o seguinte: não dá para ser feliz o tempo inteiro. Nem dá para adiantar o que vai acontecer em seus mínimos detalhes, por melhor que seja o planejamento. Por isso, não cabe sofrer por antecipação nem reclamar porque tudo não está perfeito. Nunca estará. Um equilíbrio irretocável e perene de corpo, mente e espírito simplesmente não acontece. A montanha-russa da vida traz diversão, mas também sustos.


Convencer-se de que é assim mesmo é tão difícil quanto fazer o sabiá entender que há lugares melhores para seu ninho. Ele tem que passar pela frustração de ver os galhos recém-colocados irem ao chão de vez em quando para evoluir. E seguir apesar disso, tentando, até conseguir. Porque ele vai, a experiência mostra isso. Resiliência. Tudo passa. Bons e maus momentos. Que fiquemos então com a saudade de uns e as lições de outros. E continuemos persistindo. Porque um dia os galhos se encaixarão para nos dar um ninho que não é inviolável, mas que nos empresta uma baita coragem para enfrentar as ventanias.

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