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Crônica: Aldir e Jair, caminhos opostos


A tal “gripezinha”, como foi classificada por Jair, levou Aldir. Este não resistiu às complicações da doença causada pelo vírus do qual aquele desdenhou. Aldir vai embora num momento difícil, não só pela pandemia do “resfriadinho”. Mas porque, simultaneamente a ela, o Brasil vive sob a mais descarada investida contra a democracia desde os anos de chumbo, que Aldir combateu com tanta coragem quanto elegância, como prova “O Bêbado e a Equilibrista”, canção que compôs em parceria com João Bosco e que se tornaria o hino da anistia.

Jair, com a desenvoltura de sempre quando o evento é conspirar contra o estado democrático, apoiou movimento contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal no domingo, 3, em Brasília. A cereja do indigesto bolo foram os socos e pontapés que os fãs de Jair desferiram contra jornalistas que cobriam aquela insanidade. Poucas horas depois, no Rio, Aldir dava adeus ao país que tanto amou, não sem lutar. “Ele não queria ir embora”, repetiram médicos que acompanharam seu tratamento contra a “gripezinha”.

Justo Aldir, que vivia praticamente recluso, despediu-se no momento em que todos deveriam fazer como ele. Aldir, que chorou com Maria e Clarice a morte de seus maridos, operário e jornalista, vítimas da ditadura. Sua obra-prima fala, sim, da esposa de Herzog, jornalista assassinado nos porões militares. Como tantos outros colegas de profissão, foi morto pelas mãos da violência oficial, que tantos que seguem Jair querem de volta.

Aldir queria o retorno do irmão do Henfil, que a ditadura mandara para o exílio. Jair quer a volta do sistema que expulsava mentes brilhantes de sua própria pátria. Jair, que se acha a dona do bordel, vai perdendo o brilho de aluguel que imaginou capturar de estrelas frias. Estrelas que vão abandonando um barco à deriva, sustentado apenas em sonhos delirantes de fieis obcecados por um pesudomito que reúne em sua mente doentia toda a gama de preconceitos que a (des)humanidade já criou.

Aldir imaginou a esperança numa corda-bamba, a se sustentar pela sombrinha que Jair tenta a todo custo fechar. Aldir sabia que em cada passo dessa linha ela poderia se machucar, como Jair quer fazer com todos aqueles que, simplesmente, divergem de suas opiniões. Opiniões que cada vez menos gente consegue apoiar. Talvez esta seja a sombrinha que vai sustentar a esperança em pé na corda, mais bamba do que nunca.

Aldir se foi sabendo que o show de todo artista tem que continuar. Apesar de Jair, o tal Messias que não merece o nome. Que imagina um palco em que só ele brilhe, interpretando um roteiro em que vilões se fazem de defensores da moral e dos bons costumes, enquanto se cerca de seus pares da mais duvidosa estirpe. Duvidosa? Talvez só para o gado que o segue em deprimente rebanho, mugindo “miiiiitooo”, “miiiitooooo”...

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